Para Luciano Schlindwein, bombeiro militar há quase 23 anos, a escolha da profissão foi quase que por acaso. Quando trabalhava em uma empresa guabirubense, soube do concurso regional e decidiu fazer apenas para saber como era a profissão. Com três meses, apaixonou-se pela carreira de bombeiro e sabia que essa seria sua profissão para a vida toda.
Hoje, aos 42 anos, o filho de Maria e Hercílio Schlindwein, pai de Alexia Schlindwein, comanda o Corpo de Bombeiros de Guabiruba e fala da profissão, que lida diariamente com a morte e vida das pessoas.
Guabiruba Zeitung: Não é comum vermos bombeiros militares trabalharem na própria cidade, como você conseguiu continuar em Guabiruba?
Luciano Schlindwein: Na época em que eu participei, os concursos do Corpo de Bombeiros e Polícia Militar eram regionais. Como Guabiruba pertence ao Batalhão de Blumenau, as vagas ficaram todas na região. Para Brusque, na época, eram dez vagas e eu consegui me classificar dentro delas e consequentemente fiquei na cidade. Depois disso não houve mais concursos regionalizados. Todos agora são estaduais. Conforme a classificação, o candidato pode escolher para qual cidade vai, dentre as opções disponíveis.
GZ: Qual ocorrência mais te marcou ao longo destes anos?
LS: Em geral, para todos que trabalham no Corpo de Bombeiros, as ocorrências que envolvem crianças são as mais difíceis. Nós tivemos um episódio de uma menina, entre cinco e sete anos, que aguardava o ônibus próximo à escola do bairro Lageado Baixo e provavelmente se assustou e acabou se desequilibrando e caindo da calçada, momento em que o ônibus passou por cima dela. Essa foi a ocorrência que mais me marcou. Nós ainda atendemos a menina com vida, mas no caminho para o Hospital ela acabou tendo uma parada cardíaca e não resistiu.
GZ: Em Guabiruba, quais ocorrências são mais recorrentes?
LS: Nós atendemos muitos acidentes envolvendo motocicletas. Há um grande número de colisões entre veículos, porém, as ocorrências são muito mais graves em motociclistas, pela falta de segurança. Muitas vezes o motociclista é ejetado e com isso ocorrem colisões do corpo contra poste, asfalto ou outro veículo. Isso faz com que em diversas situações o corpo seja o parachoque do motociclista, então a gravidade nestes casos é muito maior do que em automóveis.
Há muitas ocorrências de veículos que o Corpo de Bombeiros nem é chamado por não ter ocorrido nenhum ferimento ao motorista mas, em quase 100% das que envolvem motociclistas nós somos chamados, porque por menor que seja a queda, há possibilidade de torção de algum membro, escoriações, entre outros ferimentos em que há necessidade de atendimento emergencial.
GZ: Muitas vítimas se recusam a ir ao hospital e até não querem o atendimento do Corpo de Bombeiros. Quais os perigos desse comportamento?
LS: Muitas vezes, após o acidente, o condutor do veículo aparentemente se sente bem, acredita não ter tido nenhuma lesão e por mais que a gente faça a verificação e o aconselhe ir para o hospital, devido o potencial agressivo do acidente, as vítimas têm o direito legal de recusar o atendimento.
Diante dessas situações, preenchemos uma ficha onde a vítima assina declarando que se recusou a ir ao hospital, para que, se por ventura ocorra algo com ela após o acidente, não fique caracterizado que não houve atendimento por parte do Corpo de Bombeiros. Porém, sempre insistido para que o ferido vá ao hospital. Mesmo que por fora esteja tudo bem, há possibilidade de ter ocorrido uma pequena lesão interna, que pode evoluir para uma hemorragia, e a vítima pode perder a consciência horas depois do acidente, agravando o caso a ponto de não ter chances de chegar viva ao hospital.
Diante de uma colisão, há três níveis de impacto do nosso corpo. O primeiro é do veículo contra o objeto, o segundo é do nosso corpo contra o interior do veículo, e o terceiro é dos órgãos contra as cavidades internas. Órgãos maciços como fígado e baço podem romper, e por mais que não aparente num primeiro momento, a vítima pode desenvolver um hemorragia interna grave, que pode levá-la a morte.
GZ: Quais seus sonhos e objetivos?
LS: Por incrível que pareça, em 23 anos como bombeiro e 17 dentro de uma ambulância, eu nunca realizei um parto, e parece que só eu, porque todos os meus amigos já conseguiram. A gente trabalha diariamente com a morte e trazer alguém à vida é algo muito gratificante. Certa vez, chegamos com a parturiente coroando no hospital, mas não realizamos o parto. Então, se tem uma coisa que eu gostaria de fazer dentro da profissão de bombeiro é um parto antes de me aposentar.
GZ: Houve alguma ocorrência em que você salvou a vida da vítima e depois teve um contato entre vocês. Algum caso específico que te marcou?
LS: Eu passei 17 anos trabalhando em ambulância então, já atendi tantas pessoas que acabo não me lembrando da maioria. Mas é muito gratificante andar por aí e alguém chega pra ti e dizer, “você me salvou”, ou “você salvou minha vida”. Por incrível que pareça muitas vezes eu continuo não lembrando do caso ou da pessoa, à não ser que seja algo muito específico ou diferente do normal do cotidiano, mas receber o agradecimento dessas pessoas é muito gratificante. Há situações de gente que vai até o quartel nos agradecer, pessoas que nos encontram na rua ou em outros lugares e nos agradecem.
Certa vez eu estava em um casamento e um rapaz bateu em minhas costas e perguntou: “lembra de mim?”. Respondi que não e ele continuou, “mas eu lembro de ti. Você salvou minha vida, cara”. Este rapaz trabalhava com instalação de telefonia e subia até em cima do poste com uma escada e usava um cinto para ficar pendurado. Quando ele clipou o cinto o feixe não travou e ele se jogou de costas e caiu direto no chão. Atendi ele. Eu não lembrava desse rapaz, mas ele lembrava de mim, estes momentos são muito importantes para nós.
As pessoas muitas vezes acham que é só o nosso serviço e realmente é. Mas o agradecimento é maior do que qualquer valor que a gente possa receber para fazer o que fazemos.
GZ: O que você considera mais difícil na profissão?
LS: No início era lidar com a morte. Entender que até certo ponto podemos ajudar mas, de uma determinada situação em diante, não há nada que possa ser feito. Isso é muito frustrante porque você salva muitas pessoas, mas você também perde muitas pessoas. Às vezes lidar com esta perda é muito difícil. Depois, você automaticamente cria mecanismos para lidar com essas situações, mas num primeiro momento é muito frustrante, doloroso. Tive problemas para dormir. Tem muito a ver com aceitação: algumas coisas você pode mudar, outras não.
GZ: Hoje lidar com a morte é mais fácil?
LS: No decorrer dos anos nosso cérebro cria mecanismos que nos ajudam a lidar com estas situações. No meu caso foi deixar tudo no quartel. Eu não levava para casa o que eu tinha feito naquele dia, nem o que eu vi. Simplesmente eu ia embora e as coisas relacionadas ao meu trabalho ficavam ali. Um sistema de defesa tão forte que muitas vezes tive que fazer força para lembrar de determinadas situações. O cérebro se encarrega de criar mecanismos para que você não acumule aquilo diariamente, porque se acumular, em algum momento isso acaba explodindo na sua saúde física e psíquica.
GZ: Em algum momento você pensou e desistir da sua profissão?
LS: Nunca. Diferente da maioria das pessoas, o bombeiro vive sua profissão 24h por dia. Você não é apenas bombeiro no quartel, você é bombeiro em sua vida pessoal também. Eu cursei Direito e no meu curso as pessoas não me chamavam pelo nome e sim de “Bombeiro”. Então, onde quer que eu esteja eu sou reconhecido pela minha profissão.
Durante estes 23 anos eu nunca pensei em desistir. Quando me formei muitas pessoas me perguntavam se eu iria advogar e eu dizia que não. Eu estudei porque eu queria ter um curso superior, mas jamais pensei em desistir da minha profissão.
No início da faculdade, todos se apresentaram dizendo o que faziam e o que desejavam para o futuro. E quando me apresentei eu disse que pretendia continuar no Corpo de Bombeiros.
GZ: E os planos para ser oficial da corporação…
LS: O concurso para oficiais abre em geral uma vez por ano e chega a ser tão competitivo quanto uma vaga para medicina em uma universidade federal. Eu não aguentei a pressão, apesar de chegar bem perto de conseguir. Deixei para trás porque estava me frustrando e percebi que não precisava daquilo para ser feliz ou para me completar na profissão. Financeiramente seria bastante viável, mas não era algo que eu pensava “só vou ser feliz se eu conseguir isso”. Eu já me sinto completo na profissão.
Por: Grazielle Guimarães / jornalismo@guabirubazeitung.com.br
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